AS MARCAS DOS OFÍCIOS NAS LAUDAS DE SANTA MARIA A NOVA DE NOIA

 
Visitando em Noia a igreja-museu de Santa Maria a Nova e a sua “quintana de mortos”, atraem a atenção as numerosas inscrições lapidárias referidas a ofícios, que lavraram, ou pediram para ser lavradas, as pessoas que lá se fizeram soterrar, homens e mulheres. Na arte românica as representações de trabalhos e trabalhadores são numerosas, o que explica que um capítulo do meu livro Tiempo, historia y sublimidad en el románico rural, esteja dedicado a esta questão. Mas o que se observa em Santa Maria a Nova é excepcional.
        
Admite-se que provavelmente seja a maior acumulação de laudas medievais com símbolos do trabalho manual de toda a Europa, pertencentes a imensa maioria ao medievo. Por isso e por outros motivos, o assunto demanda uma investigação cuidadosa e de longa duração, da qual este artigo é apenas uma modesta e muito incompleta seção.
        
Sobre o rude granito encontram-se signos próprios dos carpinteiros, de ribeira e de terra, os moinheiros, os mercadores, os xastres, os serradores, os marinheiros, os tecedores, os canteiros, os peleteiros, os padeiros, os toneleiros, os pescadores, os sapateiros, os carniceiros, os ferreiros, os tratantes, os cereiros e outros muitos ofícios artesanais. São soterramentos de trabalhadores e trabalhadoras, como por exemplo Maria Fernandes, ou Maria de Noiha, natural da vila e falecida em 1422, cuja lauda leva gravadas as ferramentas de quem tem por ofício a carpintaria de ribeira, mesmo que esta fosse achada na Crunha. Admite-se que a imensa maioria destas laudas se fizeram nos séculos XIV e XV, embora possa haver alguma de datas anteriores e várias dos séculos posteriores, até o XIX. Certamente, também há laudas senhoriais, mas estas são secundárias no conjunto.
        
A igreja, consagrada em 1327, foi originariamente de uma só nave, em estilo ogival com alguma rememoração românica, cabeceira retangular (o que é mui pouco usual) e mínima espadana sobre a portada principal, decorada com peças escultóricas de factura pobre, o que contrasta com a magnífica roseta. Carecendo de torre, o conjunto oferece uma imagem apegada ao chão, humilde e entregada.
        
Acostuma afirmar-se que se trata de uma construção senhorial, e mesmo há uma inscrição que parece confirmar essa hipótese, mas o seu aforo reduzido e a formidável presença dos ofícios manuais faz suspeitar que estejamos, em verdade, ante uma igreja de concelho, ou popular, na que as agrupações e irmandades de trabalhadoras e trabalhadores tiveram funções decisivas. É preciso lembrar que a magnífica, por bela e sublime, basílica de Santa Maria a Maior de Ponte Vedra, de princípios do século XVI, erigida em estilo gótico e isabelino, foi levantada polo Grêmio de Mareantes da cidade, que agrupou os ofícios do mar.
        
Nesses séculos o trabalho manual possuía um reconhecimento e prestígio formidáveis, e as laudas da “quintana de mortos” de Noia é uma manifestação disso. Os trabalhadores não eram apenas proprietários dos meios de produção e da ampla maioria das matérias primas (que acostumavam conseguir-se nos imensos espaços comunais), mas organizavam também desde a sua soberania e autonomia o ato laboral, desde o início até o fim. Era um trabalho sem chefes nem patrões, onde cada artesão, ou cada obradoiro, polo geral pequeno e de tipo familiar, se auto-organizava, sem mais hierarquias do que as naturais, provenientes do bom fazer, o saber e a experiência.
        
Desconheciam também um dos piores flagelos do trabalho não-livre contemporâneo, a especialização. Quando se nos diz que quem se fez enterrar sob uma lauda determinada era, por exemplo, carpinteiro, ou ferreiro, ou toneleiro, não pensemos que a pessoa dedicasse a esse ofício tudo o seu tempo laboral. De jeito nenhum. Adicionalmente, tinha sempre uma horta, dispunha de gado e aves de curral, praticava a pesca, a caça e a coleção de frutos e ervas silvestres, reparava quando era preciso o telhado da sua casa e sabia fazer dúzias de ofícios mais. Um deles ocupava-o principalmente e por ele se definia.
        
Ainda, o tempo do trabalho era limitado. Existiam, em primeiro lugar, uma notável quantidade de feriados, talvez uns 150 por ano, e cada dia laboral tinha duração limitada. O trabalho estava também unido a variadas manifestações de festa e gozo, na forma de canto, música, recitação, albaroques e celebrações. Não estava presente essa catastrófica diferenciação entre o laboral e o festivo que hoje existe, e que faz intolerável o primeiro e degradante o segundo.
        
Não deve considerar-se que estes artesãos operassem para o mercado. Por vezes usavam o numerário, mas em outras muitas ocasiões realizavam intercâmbio de produtos salvaguardando a justiça comutativa, exigindo que cada qual recebesse bens com tanto tempo de trabalho médio incorporado como os que ele entregava. O crescimento da pressão tributária resultante da emergência do ente estatal castelão, e também a expansão do comércio marítimo de longa distância, a partir do início do século XV, ampliou a circulação monetária e fez retroceder os sistemas de troco, mas sem eliminá-los totalmente.
        
Estes trabalhadores, em efeito, padeciam da exploração, pois pagavam tributos à coroa de Castela, fosse de jeito direto ou através dos senhores territoriais, laicos ou eclesiásticos. Mas era simples, ou única, e não tinha lugar no ato produtivo mesmo, provindo do sistema político.
        
Hoje, no regime salarial, os trabalhadores sofrem uma dupla exploração: a que enriquece o empresário e a que fortalece o Estado, com os impostos. Ainda, carecem de toda liberdade no ato do trabalho, que nem dirigem, nem ordenam, nem planificam, nem organizam, sendo simples instrumentos do patrão, que torna a empresa em hierárquica e militarizada, servindo-se da tecnologia para maximizar o seu poder. Assim, as tarefas laborais são crescentemente parceladas e especializadas, mutilando o produtor. No seu conjunto, o trabalho assalariado destrói a pessoa criando seres-nada, convertendo a produção num tormento que origina inumeráveis doenças físicas e especialmente psíquicas, e que empurra milhares de pessoas ao suicídio cada ano.
        
A grande revolução emancipadora da Alta Idade Média, séculos VIII e IX, libertou e dignificou o trabalho de muitos jeitos. Deu cabo ao sistema escravista, liquidou o Estado (mas não por completo), que no fim do Mundo Antigo se tinha convertido em opressor principal dos trabalhadores ao regular coercitivamente toda a atividade laboral, e eliminou a grande propriedade. Com estas transformações de signo revolucionário reduziu a nada o estigma sobre o trabalho manual, que era tido anteriormente como uma tarefa indigna, vil y oprobriosa. Este trabalho produtivo libertado que surge daquele grande câmbio civilizador é o que se manifesta com orgulho na arte românica e posteriormente, nas laudas de Santa Maria a Nova de Noia. Com tudo, ao estar submetido a um sistema de tributação em benefício da instituição da coroa, contém um fator regressivo inicialmente pequeno mas que se irá desenvolvendo com os séculos, infortunadamente.
        
O monacato cristão revolucionário, que foi a força motriz da revolução civilizadora da Alta Idade Media, fez da obrigatoriedade, por sua vez espiritual, económica, política, convivencial e ética, do trabalho manual um dos seus pontos de diferenciação com o monacato institucional e conformista. Fazer as cousas com as próprias mãos, sem por isso desdenhar, nem muito menos, o uso de ferramentas e máquinas (em particular as movidas pola força da água), era questão mantida com todo rigor nas regras monásticas daquela tendência. Desse jeito realizaram uma achega cardinal à regeneração integral da Europa, devastada polos impérios conquistadores e agressores, o romano e os que o sucederam, todos eles envilecedores do trabalho, ao fazê-lo submetido e não-livre.
        
Santa Maria a Nova, no que possui de mais emblemático, não se pode compreender sem compreender com rigor e exatidão essas regras monásticas.
        
O trabalho manual e produtivo livre é uma via para a elevação e melhora da pessoa. Ao praticá-lo realiza-se o indivíduo como sujeito de virtude e ser humano integral. A grande mutação da Alta Idade Media tinha como um dos pontos essenciais do seu programa a universalização do trabalho manual, para assim fazer impossível a escravidão e a exploração, para além de autoconstruir a pessoa. Por isso, todas e todos deviam trabalhar com as suas mãos. E isto fazia-se com orgulho, pois era um ato livre, autodeterminado, criativo, coletivo (ao estar assentado na ajuda mútua), de intensidade, ritmo e duração limitados, não parcelado nem especializado, organizado polos próprios produtores, vinculado à festa, alheio à cobiça e à vontade de poder.
        
Nalgum texto qualifica-se de “lápidas gremiais” as de Santa Maria a Nova, o que deve ser matizado. Uma cousa são as irmandades e confrarias livres de trabalhadores, que foram muito numerosas no medievo, a grande época do trabalho manual autónomo, e outra os grémios. Estes organizavam os artesãos das cidades conforme os interesses das instituições. Aquelas existiram primeiro e posteriormente algumas degeneraram em grémios. É duvidoso que em Noia houvesse sociedades gremiais com anterioridade à segunda metade do século XV, ainda que este assunto precisa ser investigado. Portanto, o mais provável é que a imensa maioria das laudas sejam alheias, por anteriores, à ordem gremial, que teve o seu melhor momento em datas tardias, nos séculos XVII e XVIII.
        
Um ponto fundamental que os estudos publicados sobre Santa Maria a Nova não acostumam tratar é a natureza da ordem política daquela existente em Noia. Não sabemos quase nada do seu concelho, em tanto que concelho aberto, de ordem assemblear. A igreja erige-se nuns anos dramáticos para todos os territórios submetidos à coroa castelhana, os do rei Afonso XI (1312-1350), que propícia e impõe o passo do concelho aberto ao concelho pechado ou regimento (governo municipal designado pola coroa) em numerosas vilas e cidades, às vezes contra a vizinhança e outras contando com a resignação, a indiferença e até a culpável colaboração das classes trabalhadoras locais. Também não sabemos muito do seu direito consuetudinário, o de criação popular, ainda que há notícias de que no século XIII é elaborada uma carta foral na vila de Noia.
        
Necessitamos conhecer a ordem política assemblear que deveu existir em Noia, e o seu processo de desnaturalização ou extinção, assim como as condições em que esta teve lugar. Isto continha uma grave ameaça, não por diferida e subterrânea menos certa, para o trabalho livre e associado próprio do mundo medieval nos seus tempos de esplendor. Da ordem política despótica surgiu, andando os séculos, o trabalho semi-servil e desumanizador contemporâneo, que resultou numa imensa catástrofe civilizacional.
        
A lenta mas inexorável degradação da ordem política e dos sistemas de trabalho em Noia, em toda a Galiza e no resto da península Ibérica, por causa da ascensão do poder estatal na forma da instituição da coroa castelhana, põe-se de manifesto com a, aparentemente, rápida diminuição das laudas dos ofícios a partir do século XVI em Santa Maria a Nova. O mesmo se observa nos diversos estilos artísticos. A ordem românica, séculos XI até inícios do XIV, possui numerosos cenários de trabalho e bastantes representações de trabalhadores, sobretudo escultóricas, mas a arte ogival, que emergiu imediatamente depois, muitas menos, e a gótica, que é a culminação daquele, muito poucas, para desaparecer quase na sua totalidade nas diversas expressões do estilo renascentista.
        
Os trabalhadores são expulsos da arte passo a passo, a medida que os efeitos emancipadores reais da grande revolução da Alta Idade Media são subvertidos. O mesmo ocorre nos lugares de soterramento. Já no século XVI, e mesmo antes, emerge com força a ideia de que o trabalho manual é “degradante” e impróprio de pessoas de qualidade, o que leva a que os ofícios já não se ostentem com orgulho senão a que, em ocasiões, se velem e ocultem com vergonha, também nas suas expressões funerárias.
        
Uma questão curiosa, considerando a data na que se erigiu o templo, 1327, e a importância que nela tem a “quintana de mortos”, é conhecer que aconteceu com todo o conjunto na crise do século XIV, quando o número de habitantes diminuiu de maneira dramática e a peste negra golpeou o ocidente europeu de forma intermitente, até os anos iniciais do século XV. Esta crise, realmente apocalíptica (morreu entre 25% e 50%, segundo os territórios), veio unida a uma atroz mudança política regressiva, o retorno aos sistemas de governo despóticos com a extinção das formas participativas assembleares nas grandes populações. Provavelmente aquela possa ser explicada a partir desse rotundo transtorno envilecedor da ordem política. Como foi em Noia a aterradora crise do século XIV, convertida em expressão muito real da enorme catástrofe coletiva? Incrementou-se ou não para essas datas o número de laudas, imaginando que isto possa ser averiguado?
        
Para compreender de jeito razoavelmente completo a Noia que erige Santa Maria a Nova e o seu cemitério (ainda que este, quase com certeza, já existia com anterioridade), precisamos conhecer muito melhor a ordem assemblear e de concelho da vila, assim como a sua crise a partir da metade do século XIV, os sistemas de organização do trabalho com a ajuda mútua, o regime comunal integral existente, a sua vinculação mercantil com territórios afastados através das rotas marítimas, as formas de organização jurídica e militar imperantes, as relações entre o artesanato urbano e o universo rural circundante, a situação da língua galega e o estado da cultura de elaboração e transmissão oral própria das classes populares. Com isso poderemos compreender melhor essa realidade imensa que é a acumulação de laudas sepulcrais com signos dos ofícios que se acham nesta magnífica vila galega.
 
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Esta entrada tiene 12 comentarios

  1. Unknown

    Parabéns polo excelente artigo!

  2. Anónimo

    Se llaman rutas de peregrinación, sin tanto cuento ¡Fantasma! a partir del s.XI y de Santiago de Compostela, su influencia se extiende por toda Galicia.

    Oficios han existido siempre, nada que ver con el monacato cristiano revolucionario, especie criptológica desconocida por la ciencia.

  3. Anónimo

    ¿Tiene esto algo que ver con lo del tren en Santiago de Compostela? jeje

    En serio, más del 90% de las piezas expuestas en ese Museo están mal documentadas (como suele suceder, por otra parte, en casi todos los pequeños Museos de Arte religioso).

    Cualquiera que haya estudiado Historia del Arte sabe que la pervivencia del románico en Galicia, debido a su atraso cultural, a las condiciones y características del terreno, y a su situación geográfica, llega hasta finales del siglo XIX, lo cual dificulta notablemente las dataciones.

  4. Anónimo

    Sobre lo que sabemos o dejamos de saber sobre la administración política de Noia, lo que sabemos muy bien es a qué diócesis pertenecía y a quién tributaba, sin ir más lejos… Bufff

  5. Anónimo

    criptozoológica (quiero decir)

  6. Unknown

    Qual conto? Farias bem em botar uma olhada à bibliografia de " Tiempo, historia y sublimidad en el románico rural" para deixar-te de fantasmadas.

  7. Anónimo

    Cualquiera que haya estudiado historia del arte y cuyo conocimiento sobre el tema se reduzca a repetir los apuntes de la Uni como si estuviera en un examen de Junio perpetuo y vitalicio desde luego puede asumir la definicion de "atraso cultural" como propia y quedarse tan ancho…

    Que era entonces el "progreso cultural" en otros tiempos?… aceptar sumisamente la dominacion romana o musulmana con todos sus habitos y costumbres renunciando a la impronta cultural propia porque habia que reconocer en la potencia superior al salvador que te iba a sacar del atraso?… Aceptar los dogmas de la iglesia de Roma y rechazar el Priscilianismo autoctono?…

    Significa el asilvestramiento y la prevalencia de la vida rural, tribal, guerrera o la estructura castrenha un atraso simplemente porque no se tiene acceso al comercio o al contacto con culturas "superiores"?…

    Quien dicta semejantes conceptos de "atraso" y "progreso" y bajo que criterios?…

    Empacho de universiad…

  8. Anónimo

    1. El Progreso requiere de dos condiciones,movimiento y cambio.

    2. Prisciliano, obispo alucinado de Avila, no era mejor que los delincuentes de Roma, y sólo se atrajo a las clases dominantes de la Hispania romana.

    3. El "atraso cultural", lleva a perder los trenes de la Historia, lo que explica la pervivencia del románico en Galicia hasta casi finales del siglo XIX.

    4. La impronta cultural propia en España no se podría entender sin la aportación musulmana, en el arte, el urbanismo, la agricultura, el idioma, la genética, etc

    6. No existe la ciencia infusa, y ojalá algún día todo el mundo tenga la oportunidad de ir a la Universidad.

    8. Sobre "vida rural, tribal guerrera o la estructura castrenha", ¿A qué estructura te refieres, a la urbana, a la social, a la religiosa, a la política, a la económica, y a cuantos Congresos de Especialistas has ido, para hablar con esa ligereza de esos conceptos?

    9. No existen "culturas superiores". La idea de "cultura superior" es un prejuicio judeo cristiano, que nada tiene que ver con la realidad.

    10. Para acabar, lxs anarquistas siempre han luchado contra el atraso cultural, a favor del progreso de la Humanidad.

  9. Anónimo

    Si los anarquistas siempre han luchado a favor del progreso de la humanidad tendremos que concluir que,si ahora estamos en un regreso de lo humano es porque los anarquistas han desaparecido.Si antes eran el ejemplo de la moral,tanto que eran capaces de inmolarse para ello,ahora son ejemplo de lo contrario.

  10. Anónimo

    Todo el mundo yendo a la universidad…¿por qué no escribes eso en una novela de ciencia ficción?Sería un ejemplo de distopía perfecta.

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